
De um lado, temos empresas procurando os melhores profissionais para ocupar suas vagas. Do outro, pessoas buscam seus empregos dos sonhos. No meio disso, a inteligência artificial surge como uma aliada poderosa aos dois grupos. Mas o abuso desses recursos também pode trazer problemas éticos e de confiabilidade.
Segundo o relatório “Agentes de IA na prática: Como a inteligência artificial está transformando a gestão de pessoas”, divulgado na semana passada pela plataforma de recrutamento Gupy, 65% das empresas no mundo e 48% no Brasil já usam a IA em processos seletivos. Além de redução de custos e tempo nas contratações, ele indica que a IA pode reduzir a rotatividade e até aumentar a diversidade nas equipes.
Isso contraria problemas conhecidos da IA no setor, como sistemas enviesados na avaliação de profissionais e falta de transparência nas escolhas. A solução recai no uso de uma IA concebida, desde o princípio, para a mitigação sistêmica desses problemas, com justificativas claras e mantendo humanos nas decisões.
Mas nem todas empresas e candidatos se preocupam com isso. Por exemplo, muitas pessoas usam a tecnologia para alterar seus perfis, fazendo com que pareçam mais alinhados com as vagas do que realmente são. Também utilizam robôs para enviar candidaturas em massa. Segundo o LinkedIn, essas práticas ajudam a explicar o expressivo aumento de 45% nas candidaturas na plataforma no último ano.
Obviamente o impacto da IA no mundo do trabalho vai além de processos de RH e do medo de profissionais de que seus trabalhos sejam “roubados” por uma máquina. Mesmo com os benefícios que a tecnologia traz, ela exige habilidades que nem todos conseguem ter, além de alterar radicalmente a maneira como os trabalhos são feitos.
Não se pode ignorar a natureza substitutiva de funções da IA. Portanto, mais que oferecer ferramentas, sua chegada está redefinindo o que é trabalhar.
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O polido discurso do Vale do Silício que promete “aprimorar” trabalhadores e libertá-los de “tarefas rotineiras” desmorona diante da sinceridade brutal de startups como a americana Mechanize. Sua proposta é clara: automatizar totalmente o trabalho, mesmo que isso provoque demissões em massa. Tudo em nome da eficiência.
Para isso, a empresa usa a técnica de “aprendizado por reforço”, a mesma que as big techs usam para melhorar os resultados de suas plataformas de IA. Mas seus fundadores acreditam que ainda levarão pelo menos 10 anos para atingir seu objetivo.
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“Essa expansão está acontecendo em uma velocidade jamais vista, não havendo tempo para as organizações, as escolas, as universidades e as pessoas se prepararem”, afirma Marcelo Graglia, professor da PUC-SP e diretor do Observatório do Futuro do Trabalho da universidade. “Isso vem interferindo na saúde mental e do trabalho das pessoas, gerando um adoecimento coletivo”, acrescenta.
Para ele, há uma romantização da IA, exaltando seus benefícios e ocultando os seus riscos. Não se trata de demonizar a tecnologia ou impedir o seu avanço, mas é preciso avaliar conscientemente os problemas que ela traz e criar mecanismos para minimizá-los. Esse discurso de “aprimoramento profissional” só se sustenta, segundo o pesquisador, porque pouca gente realmente entende a tecnologia.
Além da substituição de profissionais por robôs, um fenômeno que cresce aceleradamente é a dos trabalhos híbridos, em que humanos e a IA dividem tarefas, gerando mais produtividade. Isso é outro ótimo benefício com uma contrapartida negativa, pois a tendência é que, mesmo em funções que não sejam extintas, serão necessários menos profissionais para cumprir seus objetivos.
Aumentando desigualdades
Essa reconfiguração aprofunda e diversifica as desigualdades. Elas começam no fosso crescente entre países que dominam a tecnologia e os que não a dominam, que está provocando uma nova Guerra Fria. Até entre cidades de uma mesma região, as que se tornam polos tecnológicos atraem mão de obra qualificada e investimentos.
Empresas que investem nessa transformação digital podem obter ganhos de até 30% em custos operacionais, ampliando sua vantagem competitiva. E a corda arrebenta no nível das pessoas, com estudantes de escolas de elite adotando IA e robótica desde cedo, enquanto os das públicas ficam alijados desse conhecimento, agravando a desigualdade na formação e, consequentemente, na vida profissional desses jovens.
Com tudo isso, uma massa de trabalhadores ficará “do lado de fora” desse novo mercado. Além disso, voltando ao uso da IA em avaliações de desempenho, implantações malfeitas podem levar à dispensa de bons profissionais e à criação de ambientes de trabalho “esquizofrênicos”, onde a meta não será mais “ser bom”, mas “parecer bom” para um algoritmo desprovido de bom senso e de compaixão. Por isso, propostas como as da Gupy, de mitigar vieses, privilegiar a transparência e manter as decisões na mão de humanos são bem-vindas em um mundo de forte automação.
“Alguns dizem que, com a automação, sobrará mais tempo para atividades criativas e descanso, mas a realidade não bate com esse discurso”, afirma Graglia. Segundo ele, os ganhos de produtividade nunca geraram menos trabalho, e agora a digitalização faz com que as tarefas invadam os tempos de descanso, de lazer e de estudo.
O pesquisador explica que o trabalho inventivo deve aumentar apenas para poucas pessoas, que já desempenham funções mais estratégicas e criativas. “Mas a grande massa de trabalhadores no mundo não tem esse perfil, e, para eles, simplesmente não se aplica essa lógica”, conclui.
Mais do que temer a máquina, é preciso, portanto, questionar o modelo de sociedade que estamos moldando a partir dela. A IA pode, sim, ampliar a produtividade e democratizar oportunidades, mas isso só será possível se enfrentarmos com coragem os dilemas éticos, sociais e humanos que ela impõe. Caso contrário, estaremos apenas transferindo velhas desigualdades para um novo ambiente, agora automatizado e ainda mais difícil de contestar.
Talvez a reflexão mais importante não seja, então, quantos empregos a IA eliminará, mas que tipo de trabalho e de trabalhador queremos valorizar. Mais do que uma tecnologia, a inteligência artificial está se tornando o espelho de nossas escolhas coletivas.