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‘Dei a arma dele, o celular, aos 9 anos’, diz mãe que inspirou lei contra redes após perder filho

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Alerta: a reportagem abaixo trata de temas como suicídio e transtornos mentais. Se você está passando por problemas, veja ao final do texto onde buscar ajuda.

Uma tragédia em comum uniu as australianas Mia Bannister e Emma Mason e fez com que se elas tornassem símbolos da luta contra as redes sociais para crianças e adolescentes. Na semana passada, a Austrália foi o primeiro país a proibir que menores de 16 anos tenham contas em plataformas como YouTube, Instagram, TikTok e Snapchat.

Ollie, de 14 anos, filho de Mia, e Tilly, de 15, filha de Emma, se suicidaram. Os dois adolescentes sofreram intenso bullying online, desenvolveram problemas de saúde mental e encontraram nas redes sociais instruções de como tirar a própria vida.

“Dei ao Ollie a arma dele, o celular, quando ele tinha 9 anos”, diz Mia, em entrevista ao Estadão, por vídeo, ao lado de Emma. Especialistas afirmam que o suicídio não tem causa única, mas apontam pesquisas que mostram que o uso excessivo do celular e das redes sociais estariam entre os principais fatores associados à piora de transtornos mentais e ideação suicida entre crianças e adolescentes.

“Nossos filhos são muito mais habilidosos com tecnologia. Eu sabia que o Ollie estava online, mas não entendia a profundidade e a gravidade do que ele via”, conta. Em 9 de janeiro de 2024, ela voltou para casa e encontrou o filho morto. “Isso é algo do qual nunca vou conseguir me recuperar.”

As duas se tornaram grandes amigas – apesar de morarem a quase mil quilômetros de distância, uma em Brisbane e outra em Sydney. Elas se conheceram no Parlamento da Austrália, onde ambas resolveram contar suas histórias para alertar o governo e outras famílias sobre os riscos das redes sociais.

“A plataforma provavelmente sabe mais sobre seu filho do que você. Cada curtida, cada comentário, cada seguidor alimenta esses algoritmos que entregam conteúdos prejudiciais e viciantes”, afirma Emma.

Mia Bannister luta pela proibição de redes sociais para crianças e adolescentes
Mia Bannister luta pela proibição de redes sociais para crianças e adolescentes

“É fácil tentar simplificar dizendo que era ‘só saúde mental’. Mas não era. Eram interações sociais que desencadearam problemas de saúde mental, e a maior parte delas acontecia pelas redes”, completa, falando sobre a filha Tilly, que morreu em 2022.

“Mal conhecia alguém online e, pouco tempo depois, tudo desandava. Parece que a dinâmica é essa: num momento são amigos, no seguinte deixam de ser, trocando as piores ofensas. Não existe mais o sussurro no canto do pátio da escola, hoje em dia, dizem para alguém se matar por mensagem de texto.”

Emma é advogada e Mia trabalha com imóveis, mas as duas passaram boa parte das últimas semanas dando entrevistas para a imprensa do mundo todo – com muitas lágrimas, mas com uma simpatia impressionante para mães que viveram o pior dos pesadelos. Mia fundou este ano uma instituição para a conscientização sobre transtornos alimentares em meninos, chamada Ollie’s Echo.

“Contar essa parte da história dela (da filha, Tilly) significa que, talvez, outras crianças não precisem perder a esperança e possam ser protegidas desse mal”, diz Emma.

As duas se dizem orgulhosas de serem australianas, terem discursado até na Organização das Nações Unidas (ONU) e representarem um país que lidera um movimento de combate aos “algoritmos que exploram a tristeza, a solidão e se alimentam da vulnerabilidade das crianças”. Na noite do dia 10, quando a lei entrou em vigor no país, a Harbour Bridge, a ponte mais famosa da Austrália, em Sydney, foi iluminada com os dizeres: Let Them Be Kids (Deixem que sejam crianças).

“Estamos aqui, sentadas à mesa da cozinha, enfrentando empresas de tecnologia que valem bilhões e algoritmos que disputam nossos filhos. Isso nos dá a chance de dizer que não é ‘nunca’, é apenas ‘ainda não’. Mas, por outro lado, esses gigantes também precisam fazer a sua parte”, diz Emma, citando a necessidade de monitoramento de conteúdos nocivos e de eliminar mecanismos de indução ao vício.

“Participamos de um experimento social que destruiu famílias, crianças, vínculos e a própria sociedade. E chegou a hora de dizer a esses gigantes que lucram com isso: basta. Chega.”

Veja a seguir os principais trechos dos depoimentos das duas mães ao Estadão.

A história de Mia, mãe de Ollie, de 14 anos

‘Eu não tinha ideia da dimensão do bullying até depois da morte dele’

Eu era mãe solo, trabalhava em tempo integral, e queria estar conectada a ele quando estivesse na casa do pai. Mas, em vez de conexão, entreguei a ele uma arma. Dei ao Ollie a arma dele, o celular, quando ele tinha 9 anos. Eu não tinha ideia da dimensão do bullying até depois da morte dele, quando consegui acessar sua conta no Discord e ver o que acontecia online.

Ele tinha 14 anos quando o perdi, em 9 de janeiro de 2024. Ollie foi vítima de bullying: o primeiro episódio aconteceu ainda no ensino fundamental e depois continuou no ensino médio, online. No fim de 2022, dois amigos mandaram mensagens no Snapchat dizendo que ele deveria se matar.

Eu vivia tentando dar conta da vida e, ao mesmo tempo, acompanhar essa tecnologia que avança muito mais rápido do que a gente. Nossos filhos são muito mais habilidosos com tecnologia. Eu sabia que o Ollie estava online, mas não entendia a profundidade e a gravidade do que ele estava vendo.

Mesmo quando ele veio até mim, depois que dois meninos enviaram mensagens no Snapchat dizendo para ele se matar… Eles usam ‘KYS’ (kill yourself, em português, se mate), nunca escrevem por extenso. Ollie estava em lágrimas, isso no fim de 2022. Ele me mostrou o telefone e pedi: ‘Pode fazer um print para eu enviar uma mensagem às mães deles?’.

O que eu não sabia é que, no Snapchat, se você faz captura de tela, o aplicativo avisa a outra pessoa. Ele disse: ‘Não posso, mãe’. Então pedi o telefone e tirei fotos da tela. Eu ainda tenho essas fotos no meu celular.

Esse foi um dos pontos que levamos à Comissão de Segurança Online (órgão da Austrália). É por isso que o agressor faz o que faz porque vocês permitem isso. O agressor pode escrever o que quiser; se a vítima tenta registrar, ele fica sabendo. Então, como você consegue documentar, levar à polícia, fazer algo, se o próprio sistema favorece quem envia a mensagem? E, claro, no Snapchat as mensagens desaparecem. É assim que o aplicativo funciona.

Mandei uma mensagem para uma das mães e disse: ‘Olha, só estou avisando o que está acontecendo. Em nenhuma circunstância é aceitável dizer ao meu filho para se matar’. E essa criança enviou um pedido de desculpas, mas não eram palavras dele. A mãe é que tinha escrito a mensagem.

Mas essas palavras ficam na cabeça dos nossos filhos e ecoam, e ecoam, e ecoam. Nós, como pais, não percebemos realmente o que essas plataformas estão fazendo. Eu mesma nem tenho TikTok.

Ponte Harbour, em Sydney, que foi iluminada com os dizeres 'let them be kids' (deixe-os ser crianças) no dia que a lei de proibição de redes para menores de 16 anos entrou em vigor
Ponte Harbour, em Sydney, que foi iluminada com os dizeres ‘let them be kids’ (deixe-os ser crianças) no dia que a lei de proibição de redes para menores de 16 anos entrou em vigor

‘Meu filho estava sendo alimentado, literalmente, pelos algoritmos’

Ollie recebeu o diagnóstico em 8 de dezembro de 2023, já hospitalizado com anorexia. Estava sendo alimentado, literalmente, pelos algoritmos. Eles diziam suas calorias de manutenção, macronutrientes, micronutrientes. De repente, eu tinha um menino de 14 anos registrando absolutamente tudo o que comia. E os algoritmos diziam que ele não era suficiente, que precisava ter certo corpo, ser diferente.

Em 2023, ele faltou 125 dias à escola. Eu simplesmente não conseguia fazê-lo voltar. No hospital, perguntaram a ele: ‘O que você vê quando olha no espelho?’ e ele disse: ‘Sou feio, burro, me odeio, sou manipulador’. Eu costumava achar que era só a adolescência. Lembro de segurá-lo diante do espelho, já em casa, e dizer: ‘Vejo um jovem brilhante, inteligente, engraçado, lindo, com um cabelo maravilhoso!’.

Não coloquei todas as proteções que talvez devesse ter colocado, mas a regra era simples, se ele fizesse algo errado e eu descobrisse, o acesso era cortado. Não consigo contar quantas vezes peguei cabos USB, peguei a tesoura e cortei na frente dele.

Mas ele também comprou coisas na internet para automutilação. Quando Ollie voltou a comer e estava no processo de realimentação, ele se punia se machucando. Eu nem sabia que ele tinha comprado aquilo, só descobri quando a polícia me contou.

Meu filho era contra cigarro, bebida. Era um menino saudável. Mas sei que ele pesquisou sobre drogas e pílulas. Isso não fazia sentido nenhum. Não era ele. É o que acontece online, na internet: você cai em conteúdos que conduzem você a lugares que você nunca imaginou.

Sinto falta dos comentários dele. Quando era pequeno e via filme da Disney com ele, tipo Carros, ficava perguntando: ‘O que vai acontecer agora, mãe? E eu respondia: ‘Não sei, Ollie, também nunca vi isso antes’. Nunca consegui ver um filme inteiro na vida. Agora sinto falta disso. Eu vou para casa e o silêncio é ensurdecedor. Era meu único filho, éramos só eu e ele.

‘Estamos nós, lutando contra o bullying online, enquanto somos atacadas’

Precisamos de mais apoio em saúde mental para as crianças que já foram afetadas pelas redes sociais. Muita gente tem dito: ‘Então eles não vão entrar nas plataformas, está tudo resolvido’. Mas o trabalho com essa lei está só começando, precisamos de melhor educação digital nas escolas, de mais transparência das plataformas.

Não se avalia uma lei em um ou dois dias. Não se mede sucesso no primeiro dia, nem no sétimo. O que vemos hoje será muito diferente do que veremos em seis meses, em doze meses.

Todas as pessoas dizem que estamos mais conectados do que nunca, mas não estamos. Criamos uma geração solitária. As conexões nas redes não são reais.

O conselho que dou aos pais e mães é: levem seus filhos para fora. Sejam modelo de bom comportamento digital. Larguem o celular quando estiverem com eles. Criem regras, como não mexer no telefone enquanto estão juntos. Saiam, aproveitem o verão. O sol está brilhando, está maravilhoso.

Desde que nos tornamos pessoas públicas com as histórias dos nossos filhos, não consigo nem descrever o nível de ódio que recebemos. Outro dia, quando estávamos na TV, havia um comentário em um dos posts: ‘Essas mães são inúteis, péssimas mães’. Somos chamadas de tudo. E aqui estamos nós, lutando contra o bullying online, e nós mesmas somos atacadas.

A história de Emma, mãe de Tilly, de 15 anos

‘Dizem para alguém se matar por mensagem de texto’

Minha filha Tilly tinha 15 anos quando se matou. Era uma menina comum do interior da Austrália, envolvida com dança, arte, atividades criativas, teatro. Mas começou a sofrer bullying na escola e, conforme sua presença no mundo digital aumentou, o bullying online cresceu.

Dei um celular a ela quando tinha 12 anos, não só porque cedi à pressão que ela fazia, mas porque eu trabalhava fora e queria estar sempre conectada com ela, disponível quando precisasse. Ela era ansiosa, frágil.

Uma amiga um dia recebeu uma imagem de um site pornográfico belga, cortou a cabeça, colocou a da Tilly, e espalhou isso no Snapchat. Para ela, foi um ponto de virada profundo. Ela parou de sair, de ir à escola, de dançar, de fazer arte. Parou tudo. Transformou-se numa menina totalmente fechada, incapaz de lidar com o mundo.

Emma Mason, que perdeu a filha Tilly, de 15 anos, e já discursou na ONU sobre os riscos das redes sociais
Emma Mason, que perdeu a filha Tilly, de 15 anos, e já discursou na ONU sobre os riscos das redes sociais

Ao mesmo tempo, ainda tinha o celular. E ouvimos isso o tempo inteiro: falam em conexão, mas é só a ilusão da conexão, sem conexão real. Ela certamente tinha alguns amigos, mas essas amizades iam e vinham. Mal conhecia alguém online e, pouco tempo depois, tudo desandava.

Ao menos na Austrália, a dinâmica é essa: num momento são amigos, no seguinte deixam de ser, trocando as piores ofensas. Não existe mais o sussurro no canto do pátio da escola. Hoje, dizem para alguém se matar por mensagem de texto.

‘É fácil tentar simplificar dizendo que era ‘só saúde mental’

Você não sabe o que pode acontecer quando um jovem entra nas redes sociais e os algoritmos o capturam, eles alimentam sem parar. E, se você já está triste, vulnerável, eles só te empurram ainda mais para o fundo.

A Tilly perdeu qualquer esperança. Tivemos 11 tentativas de suicídio; a 12ª foi fatal. Foi horrível, como uma bomba explodindo dentro da minha família.

E, desde então, decidi que precisava fazer algo, tentar salvar o mundo, corrigir a devastação que as redes sociais causam às nossas crianças E, no fim, levei essa luta até a ONU, para pedir que o resto do mundo se junte a nós.

Quando a Tilly morreu, ao ver o relatório da polícia e o que encontraram no telefone dela, vi as imagens… era automutilação, negatividade, tristeza e também instruções de como tirar a própria vida. Literalmente, ensinavam ‘como fazer para ter sucesso’.

Sempre que chegava um pacote que ela comprava, eu abria, via o que era e, dependendo do conteúdo, fechava e guardava… ou simplesmente fazia com que “nunca tivesse chegado”. E tudo isso era comprado a partir de vídeos do TikTok.

Ficava claro que havia ali algo profundo, sombrio, perturbador. E é fácil simplificar dizendo que era ‘só saúde mental’. Mas não era. Eram interações sociais que desencadearam problemas de saúde mental — e a maior parte das interações era pelas redes sociais.

Os algoritmos exploram a tristeza, a solidão; se alimentam da vulnerabilidade das crianças. Encontram o ponto frágil e, se a criança para por um segundo em um conteúdo, de repente começa a ser bombardeada por ele. Contar essa parte da história dela significa que, talvez, outras crianças não precisem perder a esperança e sejam protegidas desse mal.

‘Não queremos voltar aos anos 1950 na Austrália’

Não estamos dizendo às crianças que precisam abandonar os celulares ou ficar fora da internet. Não estamos tentando voltar à vida dos anos 1950 na Austrália. Há ainda os aplicativos de mensagem, o WhatsApp, o Messenger.

Alguns pais dizem: ‘Vou ajudar meu filho a driblar essa lei’. Ouvimos isso o tempo todo. E digo a esses pais: cuidado, ajude seu filho a burlar o sistema e talvez você não tenha mais um filho.

Vimos isso destruir nossas famílias. Sentimos a dor todos os dias. Quando alguém diz: ‘meu filho de 11 anos é influenciador digital’, respondo: você está apenas monetizando sua criança, fazendo exatamente o que as plataformas querem — transformar seus filhos em produtos.

É preciso permitir que cresçam, que seus cérebros se desenvolvam, antes de entrarem nesse espaço digital do qual não conseguem mais sair.

A plataforma provavelmente sabe mais sobre seu filho do que você. Cada curtida, cada comentário, cada seguidor alimenta algoritmos que entregam conteúdos prejudiciais e viciantes, uma espécie de ‘heroína social’, que levam nossos filhos a se viciar, como se fosse uma droga.

Participamos de um experimento social que destruiu famílias, crianças, vínculos e a própria sociedade. E chegou a hora de dizer a esses bastardos que lucram com isso: basta. Chega.

Onde buscar ajuda para sofrimento psíquico

Se você está passando por sofrimento psíquico ou conhece alguém nessa situação, veja abaixo onde encontrar ajuda:

Centro de Valorização da Vida (CVV)

Se estiver precisando de ajuda imediata, entre em contato com o Centro de Valorização da Vida (CVV), serviço gratuito de apoio emocional que disponibiliza atendimento 24 horas por dia. O contato pode ser feito por e-mail, pelo chat no site ou pelo telefone 188.

Canal Pode Falar

Iniciativa criada pelo Unicef para oferecer escuta para adolescentes e jovens de 13 a 24 anos. O contato pode ser feito pelo WhatsApp, de segunda a sexta-feira, das 8h às 22h.

SUS

Os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) são unidades do SUS voltadas para o atendimento de pacientes com transtornos mentais. Há unidades específicas para crianças e adolescentes. Na cidade de São Paulo, são 33 Caps Infantojuventis e é possível buscar os endereços das unidades nesta página.

Mapa da Saúde Mental

O site traz mapas com unidades de saúde e iniciativas gratuitas de atendimento psicológico presencial e online. Disponibiliza ainda materiais de orientação sobre transtornos mentais

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