A contratação recente de mais de 900 novos docentes – algo inédito na última década, após anos de déficit de profissionais – traz uma oportunidade de inovação no ensino da Universidade de São Paulo (USP), acredita o professor da Faculdade de Medicina Aluísio Segurado, candidato a reitor nas eleições deste ano.
“É o momento de mobilizarmos toda a energia dessa juventude para promover as mudanças que, em um quadro cristalizado, às vezes são mais difíceis de serem alcançadas”, afirma, em entrevista ao Estadão.
Ele acredita que os novatos podem mais facilmente incorporar tecnologias, adotar metodologias ativas centradas no aluno, promover currículos interdisciplinares e ainda rever as formas de avaliação, principalmente por causa inteligência artificial.
“A tecnologia pode permitir que o estudante entregue um trabalho que não é de sua autoria. Devemos criar formas de avaliação que possam ser aplicadas na sala de aula e na resolução de problemas, que mobilizem o conhecimento de forma mais dinâmica, diferente daquele antigo trabalho que entregávamos no fim do semestre.”
Até se inscrever para a eleição, Segurado era pró-reitor de Graduação e seu discurso é de continuidade. Prevê, porém, um futuro mais desafiador – demonstra preocupação com ataques à democracia e às universidades americanas e com o descrédito dos organismos multilaterais. “A USP precisa estar na vanguarda da discussão desses dilemas, que envolvem não só desafios paulistas e brasileiros, mas também os mundiais.”
Segurado é infectologista e dirigiu o Instituto Central do Hospital das Clínicas na pandemia de covid-19. Para ele, a mobilização da universidade nesse período, que envolveu médicos e professores, do atendimento a pacientes até a criação de novos respiradores, foi um exemplo claro da sua importância para o País.
“Por vezes, há a percepção de que as universidades vivem numa redoma, usufruindo de sua estrutura em benefício próprio”, diz. “Não há dúvidas de que a resposta de São Paulo àquele momento dependia muito da força da USP. É difícil imaginar que outras instituições poderiam agir com tanta rapidez e agilidade.”
Sua candidata a vice é a ex-diretora da Escola Politécnica Liedi Légi. As eleições na USP serão no dia 27 de novembro, das 9h às 18h. Um colegiado de cerca de 2 mil pessoas escolherá uma lista tríplice, que será enviada ao governador Tarcísio de Freitas (Republicanos). O Estadão publica esta semana entrevistas com os candidatos ao cargo.

O financiamento da USP está ameaçado nos próximos anos, com as mudanças na reforma tributária, que acaba com o ICMS, fonte de recursos da universidade?
É fundamental observar o que acontece no Brasil e no exterior, especialmente os ataques à democracia, à ciência e ao financiamento público das universidades. A autonomia das universidades estaduais paulistas é única e foi responsável pelo desenvolvimento do ecossistema de ciência e tecnologia do Estado, fazendo da USP, Unicamp e Unesp potências de produção de conhecimento, formação e interlocução com a sociedade. Porém, a base legal que sustenta essa autonomia é frágil. É um decreto estadual que vem sendo respeitado, mas que apresenta riscos, especialmente agora, na implantação da reforma tributária. O governo reconhece a importância das universidades, mas essa mudança deve ser prioridade da próxima gestão, pois sua implementação vai se dar ao longo dos próximos anos. Acho importante ter as cotas partes, que hoje garantem o funcionamento das universidades (o orçamento da USP representa 5% da arrecadação do ICMS, Unesp e Unicamp também têm as suas cotas). O sistema federal, que não tem autonomia (financeira, ou seja, a cada ano as instituições depende da liberação de valores pelo Ministério da Educação), vive a cada ano uma angústia sobre o orçamento. Os projetos de pesquisa, de médio e longo prazo, dependem de sustentabilidade. Mais do que reforçar a autonomia em bases sólidas, precisamos conquistar a sociedade para que ela perceba o papel estratégico das universidades estaduais na construção de um futuro melhor, que impacta a vida de todos.
A sociedade não entende bem o papel da universidade pública?
Por vezes, há a percepção de que as universidades vivem numa redoma, usufruindo de sua estrutura em benefício próprio. Mas não é assim. A universidade é construída por todas as pessoas que fazem parte da comunidade, mas também é formada a partir da relação com a sociedade. Um exemplo claro foi a covid-19, que mostrou a importância das universidades. Fomos mobilizados para uma operação emergencial contra a pandemia, envolvendo pesquisadores, professores, médicos e equipes de saúde, com parcerias internas, como a feita com Escola Politécnica, fundamental na produção de ventiladores. Não há dúvidas de que a resposta de São Paulo àquele momento dependia muito da força da USP. Difícil imaginar que outras instituições poderiam agir com tanta rapidez e agilidade. Essa experiência reforça o papel estratégico da USP na construção do futuro e na solução dos desafios do mundo contemporâneo.
Os próximos anos serão mais desafiadores para a USP em virtude de ataques à democracia e às universidades que se intensificaram?
Será um período desafiador. Veja, os ataques à democracia norte-americana, que alguns anos atrás eram impensáveis, hoje se repetem e se sucedem numa escalada bastante preocupante. Além disso, há o descrédito dos organismos multilaterais, que são essenciais para a busca de consensos internacionais. Um individualismo que enxerga sociedades apartadas em um mundo, que sabemos bem, os desafios são necessariamente globais, é preocupante. A USP tem a responsabilidade de preparar gerações de líderes capazes de entender que os desafios são globais. Na minha área, por exemplo, vários programas de cuidado a HIV/AIDS em países de baixa renda foram totalmente cortados por causa de verbas norte-americanas.
A saída dos Estados Unidos da Organização Mundial da Saúde (OMS) é extremamente preocupante. Essa perda de força e de energia dos organismos multilaterais e a imposição de medidas autoritárias, que privilegiam interesses de alguns em detrimento da sociedade como um todo, são questões que nos preocupam bastante. A minha visão é que a USP precisa estar na vanguarda da discussão desses dilemas, que envolvem não só os desafios paulistas e brasileiros, mas também os mundiais.
O que pretende fazer se for eleito reitor em relação a isso?
Queremos criar o escritório Ciência e Sociedade, que abrirá canais de diálogo com diferentes setores da sociedade na busca por pautas de pesquisa que atendam aos desafios da contemporaneidade. Essas áreas críticas incluem mudanças climáticas, insegurança alimentar, saúde pública, políticas públicas e defesa da democracia. A ideia é que, ao estabelecer esses diálogos, possamos produzir soluções mais eficazes, que a sociedade espera de nós. Esse escritório ficará vinculado ao gabinete do reitor.
Na universidade, há estudantes mudando de casa, tendo que cuidar da própria vida, lavar roupa, fazer comida, e entrando em cursos bastante exigentes. Queremos um primeiro ano mais acolhedor, fazendo uma redistribuição dos conteúdos para que seja mais humano e menos massacrante.
Aluísio Segurado
O senhor foi pró-reitor de Graduação. Que mudanças prevê para essa área, também pensando na maior atratividade dos jovens?
Já conseguimos implementar várias mudanças, como o agrupamento de carreiras no vestibular, o Enem USP, o Provão Paulista seriado, que surgiu do reconhecimento de que 85% dos alunos do ensino médio das redes públicas paulistas se autoexcluíam do vestibular, não prestavam nem Fuvest (processo seletivo da USP) nem Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). Conseguimos preencher sempre mais de 90% das 1,5 mil vagas oferecidas, atraindo candidatos de mais de 250 municípios do Estado. E o dado mais impressionante foi que, de um cenário em que apenas 8% dos estudantes do 1º ano do ensino médio tinham participado do vestibular, subiu para mais de 90%, o que evidencia mudança significativa na inclusão e no acesso.
E mudanças de currículo?
As unidades já se mobilizaram, agruparam as carreiras no vestibular e tivemos mais de 140 mudanças de projetos pedagógicos de curso no último ano. Agora, o foco será no primeiro ano. Entendemos que a mudança do ensino médio ao superior impõe desafios aos jovens. Na universidade, há estudantes mudando de casa, tendo de cuidar da própria vida, lavar roupa, fazer comida, e entrando muitas vezes em cursos bastante exigentes. Nosso esforço será para construir um primeiro ano mais acolhedor, fazendo redistribuição dos conteúdos nas matrizes curriculares, para que seja mais humano e menos massacrante. O foco será nos cursos de Ciências Exatas, onde há alta taxa de reprovação no primeiro ano. Estudos mostram que esse fracasso é um preditor independente de evasão. O sonho da inclusão e da finalização do curso na USP precisa se concretizar numa experiência de pertencimento.
Mas o senhor diria que as dificuldades são mais pedagógicas, por deficiência do ensino básico, ou também por questões comportamentais?
É uma somatória de todos esses fatores. Existem questões pessoais relacionadas ao desafio de se ver no ensino superior, que exige muito mais proatividade do estudante. Além disso, a mudança de ambiente, muitas vezes de moradia, altera a rotina dos estudantes, e também há a necessidade de superar um modelo pedagógico centrado no professor. Todos os estudos educacionais mostram que a maior efetividade do processo pedagógico está em metodologias centradas no estudante, dando mais protagonismo ao estudante, que busca resolver situações complexas e concretas, ou seja, aplicar o conhecimento teórico na solução de desafios do mundo contemporâneo.
Para isso também precisa formar o professor.
Sim. Já realizamos a primeira semana pedagógica da USP, que mobilizou mais de 150 atividades formativas e participação de mais de 1,1 mil professores e professoras. Isso representa cerca de 20% do corpo docente da USP, que participou de atividades de formação para incorporar tecnologias no processo ensino-aprendizagem e promover a integração curricular interdisciplinar. Esse esforço é parte do que queremos que se traduza na mudança do primeiro ano. Também precisamos estar mais preparados para receber uma população de alunos mais diversa, o que exigirá mudanças na acessibilidade pedagógica.
Mudanças, em geral, sofrem muita resistência interna na USP, não?
Nossa magnitude e nossa tradição, se por um lado, representam uma dificuldade de mobilização, por outro, acabam sendo uma das nossas forças em termos de potência. O que precisamos mesmo é mudar a cultura institucional. Hoje, acredito que estamos em um momento muito privilegiado. Depois de nove anos sem contratar novos professores, a USP terá contratado até o fim do próximo ano mais de 900 docentes. Essa juventude chega com muita energia, vontade e felicidade, pois foram concursos muito disputados no meio acadêmico. Tornar-se um docente da USP é motivo de orgulho para esses novos colegas. É o momento, diria, de mobilizarmos toda essa energia para promover aquelas mudanças que, em um quadro muito cristalizado, às vezes são mais difíceis de serem alcançadas.
Como o senhor vê a inteligência artificial nesse contexto da universidade, inclusive na forma como ela é usada pelos alunos?
A potência dessas tecnologias é fantástica, no sentido de simplificar processos, diminuir o trabalho repetitivo e criar ambientes mais criativos e colaborativos no processo de ensino-aprendizagem. Temos colegas que estão desenvolvendo novas tecnologias com expertise da própria USP, a universidade precisa incorporar essas tecnologias, fornecendo aos docentes segurança de que faremos uso crítico, racional, responsável, eticamente adequado e pedagogicamente embasado. Com relação ao uso pelos alunos em trabalhos, acredito que isso passará pela necessidade de revermos nossas formas de avaliação. A avaliação tradicional, baseada no trabalho entregue pelo estudante talvez não seja mais viável, pois a tecnologia pode ser usada de maneira inadequada, permitindo que o estudante apresente um trabalho que não é de sua autoria. Devemos criar formas de avaliação que possam ser aplicadas na sala de aula e na resolução de problemas, que mobilizem o conhecimento de forma mais dinâmica, diferente daquele antigo trabalho que entregávamos no fim do semestre, feito em casa e com fontes limitadas.

O senhor tem analisado nos últimos anos os rankings internacionais, qual a importância deles para a universidade?
Os rankings acadêmicos internacionais são importantes, mas é preciso entender que eles foram criados por empresas que se valem de indicadores para calcular a pontuação, atendendo a interesses diferentes. A maioria delas vem do mundo anglo-saxão e coloca peso em indicadores que favorecem esses países. Por exemplo, a USP costuma ser penalizada pelo percentual de alunos estrangeiros, o que é compreensível, pois em um país como o Brasil, onde a língua é o português, a atração de estudantes de outros países é mais limitada. Mas, ao invés de trabalhar para os rankings, a USP deve trabalhar com eles, aproveitando o que cada um tem de bom e analisando-os em conjunto. Por exemplo, em questões de sustentabilidade, a USP está entre as lideranças mundiais. Nosso câmpus pode ser um exemplo de uma cidade sustentável, uma cidade modelo para o século XXI. As universidades devem ir além de indicadores de resultados, como quantos alunos formamos ou artigos publicados. É preciso refletir sobre o que tudo isso realmente significa, qual o impacto positivo que gera na vida das pessoas. A sociedade quer saber de fato o que a pós-graduação brasileira faz além de produzir teses e artigos. Como esses resultados efetivamente mudam a vida das pessoas?
Como medir esse impacto?
Hoje, já utilizamos ferramentas que analisam a origem do conhecimento usado na construção de políticas públicas, por exemplo, a partir de referências bibliográficas de documentos oficiais de nações e organismos internacionais. Isso ajuda a identificar o impacto real do conhecimento produzido. Um é a Faculdade de Direito: é difícil medir quantas sentenças judiciais são pautadas em jurisprudência que tem origem no conhecimento da USP. Ainda assim, esse é um impacto muito mais direto e transformador do que números tradicionais, isso demonstra que o conhecimento da USP está de fato mudando vidas. Buscar essas métricas de impacto é um desafio, mas é uma necessidade cada vez maior.
É preciso refletir sobre o que tudo isso realmente significa, qual o impacto positivo que gera na vida das pessoas. A sociedade quer saber de fato o que a pós-graduação brasileira faz além de produzir teses e artigos. Como esses resultados efetivamente mudam a vida das pessoas?
Aluísio Segurado
O senhor fala no programa de gestão que houve um tempo em que a USP era fechada e agora isso mudou. Que impactos acha que isso trouxe?
O impacto é visível nas salas de aula e nos laboratórios. A USP de hoje é completamente diferente da que eu cursei como estudante. Ela é uma universidade diversa, e o ambiente pedagógico está enriquecido por diferentes visões de mundo, o que é muito importante na formação de todos os profissionais. Ela rompeu bolhas. Porém, chegou a hora de aprimorarmos as ferramentas de avaliação do impacto da inclusão. Temos indicadores de resultado, como os 54% de ingressantes que vêm da escola pública, e um percentual de alunos pretos, pardos e indígenas. Mas, o que isso realmente significou na formação dessas pessoas? Estamos formando as primeiras turmas de graduandos mais diversas. E a empregabilidade de todos será a mesma?
Mas alguns do impactos podem ser difíceis de medir como, por exemplo, o benefício na formação de uma convivência inter-racial.
Isso é uma avaliação que, mesmo que seja mais difícil de quantificar, pode ser feita de forma qualitativa. Por mais difícil que seja aferir esse aspecto, é essencial reconhecer esse impacto, esse ser humano mais preparado. Isso não está na formação técnico-profissional direta, mas na minúcia da formação ética e cidadã. E esse impacto se dá na interação, na convivência com a diversidade.