O recém-sancionado Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) Digital é tido por especialistas como um avanço na proteção de menores, alinhando o Brasil a legislações internacionais e compartilhando a responsabilidade de monitoramento entre famílias e plataformas digitais. Porém, a realidade da educação brasileira ainda é desigual em relação ao tema, já que cerca de 40% das escolas seguem sem internet. A falta de conexão dificulta a implementação da educação midiática nas escolas e a formação dos professores nesse sentido.
O assunto foi discutido no painel “Redes sociais, tecnologia e as novas gerações”, que integra o ciclo de debates “Educação em Transformação”, promovido pelo Estadão, no Museu do Ipiranga, em São Paulo, nesta segunda-feira, 29.

Com o ECA Digital, as plataformas passam a ser responsabilizadas por veicular conteúdos criminosos e impróprios, como uso de drogas, o que antes não ocorria. “É um avanço concorrencial e tira a assimetria regulatória, porque uma emissora de televisão, por exemplo, não pode transmitir um crime ao vivo, mas as redes podem”, explica a advogada Catarina Fugulin, líder de Políticas Públicas do Movimento Desconecta.
Outro avanço destacado é o de que as contas de menores de idade precisarão estar vinculadas a uma conta de um adulto responsável, e haverá verificação etária ligada à classificação indicativa.
Apesar do progresso regulatório sobre as crianças no ambiente digital, o País enfrenta um paradoxo: cerca de 40% das escolas públicas, onde a educação digital e midiática deveria acontecer, continuam sem internet, enquanto 97% da população possuem acesso crescente a dispositivos móveis em casa.
“Em casa a gente tem o acesso, mas não temos a estrutura necessária para educar para o uso desse acesso”, argumenta Julia Sant’Anna, diretora executiva do Centro de Inovação para a Educação Brasileira (Cieb). “É como se a gente vivesse duas realidades: uma em que os estudantes têm algo na mão que pode ser muito nocivo e uma escola que não está amparada para lidar com isso. A gente precisa melhorar a infraestrutura da rede pública de ensino para conseguir fazer com que esses universos se encontrem finalmente.”
A partir do avanço na conectividade nas escolas, será possível evoluir na formação dos professores e, consequentemente, na proteção de crianças e jovens no ambiente digital. “A educação digital e midiática é uma necessidade urgente para discutir como usar corretamente o ambiente digital”, afirma Patrícia Blanco, presidente do Instituto Palavra Aberta.
A especialista destaca a necessidade de formar cidadãos críticos que possam reconhecer e valorizar informações de qualidade. “Não podemos demonizar a tecnologia. Telas não vão embora. Cada vez mais nossas relações serão mediadas por tecnologia, profissões vão precisar de formação tecnológica”, diz. “Educar é proteger, para que a nova geração possa interpretar melhor e usufruir desses ambientes.”
Blanco acrescenta ser possível realizar a educação midiática mesmo sem alta tecnologia nessas instituições, por meio, por exemplo, de análise crítica de recortes de jornais ou embalagens de produtos. Contudo, a especialista pondera que a tecnologia é necessária para discutir tópicos avançados como algoritmos e pegada digital.
Ainda sobre a desigualdade socioeconômica no Brasil, as especialistas destacaram a necessidade de adaptar as orientações de uso digital entre crianças e jovens para famílias de baixa renda, que, muitas vezes, têm no celular uma forma de “proteção” contra a violência e o tráfico nas ruas, e pouco acesso a redes de cuidado.
Entre as adaptações possíveis, a líder de Políticas Públicas do Movimento Desconecta sugere substituir a telinha pela telona, já que a TV poderia cumprir o papel de manter a criança entretida, mas permite que os adultos presentes saibam o que ela está assistindo e possibilita limitar o acesso a conteúdos adequados para a faixa etária.
Presente em mais de 600 escolas, o movimento estabelece limitação ao uso digital por jovens e crianças, como adiar o primeiro smartphone até os 14 anos e o acesso a redes sociais até os 16 anos. A iniciativa, porém, ainda está limitada a instituições particulares. “O plano para 2026 é chegar nas escolas públicas. Estamos em contato com secretarias de estado nesse sentido”, diz Fugulin.