BRASÍLIA- A possibilidade de criação de uma prova de proficiência para formandos em Medicina colocou em lados opostos o Conselho Federal de Medicina (CFM) e o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
O Exame Nacional de Proficiência em Medicina (Profimed) foi aprovado em primeiro turno na Comissão de Assuntos Sociais (CAS) do Senado há duas semanas. O projeto começou a ser discutido nesta quarta-feira, mas sua votação foi adiada após pedido de vista feito pelo senador Rogério Carvalho (PT-SE).
A estratégia do governo foi empurrar a discussão para o ano que vem, a tempo de articular novas mudanças no texto. Antes do pedido de vista, o relator Dr. Hiran havia rejeitado todas as emendas propostas. Após debate sobre a viabilidade da concessão de vista, Castro (MDB- PI) acatou o pedido.
“Estamos utilizando técnicas protelatórias de um projeto extremamente importante para o nosso País”, criticou o senador Dr. Hiran. Em resposta, o presidente da comissão afirmou que a medida se trata de um direito concedido pelo regimento da Casa.
O que diz o projeto
A proposta é que os estudantes de Medicina sejam submetidos a uma prova para exercer a profissão, como acontece com alunos de Direito que precisam se submeter ao exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para advogar.
Nos últimos dias, membros do governo e parlamentares se movimentaram nos bastidores para tentar reverter o resultado e barrar o exame. O governo federal concorda com a realização de uma prova de proficiência, mas defende que o Exame Nacional Nacional de Avaliação da Formação Médica (Enamed), que já existe e é coordenado pelo Ministério da Educação (MEC), cumpra essa função.
“A ideia é que a gente possa utilizar o Enamed como a prova de proficiência que o conselho tanto cobra. Eu estou defendendo que a nota da prova esteja no diploma do aluno. Não tem sentido ter duas provas”, argumenta o ministro da Educação, Camilo Santana, que defende que o tema fique para discussão no ano que vem devido a sua complexidade.
O texto aprovado em primeiro turno no Senado, em votação apertada por 11 votos a 9, mantém o Enamed, mas cria também o Profimed. A ideia é que o exame do MEC, que já existe, seja utilizado apenas para aferir a qualidade dos cursos de Medicina, enquanto a nova prova funcionaria para credenciar os médicos para exercício da função e ficaria a cargo do CFM.
O relatório do senador Dr. Hiran (PP-RR) cria ainda a “Inscrição de Egresso em Medicina” para estudantes que se formarem no curso. Assim, os alunos que não passarem na prova poderão atuar em atividades técnico-científicas como monitor de pesquisa científica; apoio em atividades administrativas e educacionais de estabelecimentos de saúde; colaboração em programas de educação médica e eventos científicos, entre outras.
O relator prevê ainda que o exame esteja sob supervisão de uma comissão de apoio e acompanhamento de caráter consultivo, composta por membros do MEC e do Ministério da Saúde.

A proposta do governo
O governo tentou propor um texto alternativo por meio do voto em separado do senador Rogério Carvalho (PT-SE), mas foi derrotado. Com isso, para o segundo turno, Carvalho desmembrou o voto em emendas para tentar alterar o texto. As principais emendas derrubam a criação da nova prova e colocam o Enamed como a avaliação apta a credenciar a atuação médica. O Estadão tentou contato com o senador, mas não obteve resposta.
O argumento principal do governo é que a criação de uma nova prova com mera função de credenciar médicos a atuarem profissionalmente coloca sobre o estudante toda a responsabilidade por uma formação médica falha e não contribuiu para melhorar o padrão da Medicina, com responsabilização das instituições de ensino.
A partir disso, a proposta do governo é que o Enamed cumpra função dupla: avalie a qualidade dos cursos a partir do desempenho dos estudantes e também sirva como prova de proficiência.
O arranjo prevê que o exame seja aplicado no 4º ano antes de o estudante ingressar no internato, quando inicia a parte prática do curso; e também no 6º ano, ao final da formação. O resultado da segunda etapa seria considerado para credenciar os novos médicos.
O governo propõe ainda que o aluno que não alcançar nota necessária no exame, mas for aprovado na residência médica possa exercer funções de médico no âmbito do curso, de maneira supervisionada. Os estudantes que não conseguirem aprovação também poderiam atuar no programa Mais Médicos no período máximo de quatro anos.
Para governo, formato pode gerar discrepância
Secretário de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES) do Ministério da Saúde, Felipe Proenço defende que haja uma prova de proficiência, mas que siga o modelo do governo.
Em abril, o governo federal anunciou a criação do Enamed para avaliar estudantes de Medicina. Em seguida, anunciou que cursos com desempenho ruim na prova seriam submetidos a sanções incluindo a suspensão do vestibular.
Na opinião de Proenço, o formato é mais completo e permite a análise do desempenho ao longo do curso, bem como a atribuição de responsabilidades às instituições de ensino e não apenas ao estudante.
“A gente tem interesse que seja um sistema completo de avaliação, que possa olhar o papel do estudante, do concluinte do curso de medicina, de forma progressiva. Ou seja, que não seja somente um exame no término do curso, que ele possa ser realizado durante o curso”, afirma.
Ele diz ainda que a existência de duas provas (Profimed e o Enamed) vai confundir os parâmetros de proficiência, uma vez que o estudante pode ter desempenhos diferentes em cada uma das avaliações. “É um formato que pode gerar discrepância de avaliações”, diz, questionando ainda o custo para o estudante que terá de arcar com dois exames diferentes.
Outro ponto questionado pelo governo é que o modelo proposto pelo senador pode estrangular a formação de especialistas no Brasil, uma vez que não permite que os estudantes cursem residência caso não sejam aprovados no Profimed.
“Isso pode impactar em aumentar a ociosidade da residência médica que hoje está em torno pelo menos de 20% das vagas. Então, o que a gente quer é que não haja um impacto em aumento de ociosidade da residência médica e, assim como em outros países que têm o exercício da medicina sob supervisão durante a residência, a gente tenha essa oportunidade também no Brasil”, defende o secretário.
A ampliação do acesso da população a especialistas é uma das principais políticas do terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “O programa Agora Tem Especialistas é uma obsessão que eu tenho”, disse o presidente na semana passada.
Uma das propostas do relator do Profimed no Senado inclui um plano de expansão da residência, com meta de alcançar, até 2035, ao menos 0,75 vaga de residência por médico formado. O senador Hiran questiona, no entanto, a possibilidade de ingresso em uma residência sem aprovação na prova de proficiência: “Como ele vai ser residente sem ser médico?”.
CFM quer ser responsável pela prova
A criação de um exame de proficiência é uma demanda antiga da classe médica, que viu a quantidade de cursos de Medicina explodir sobretudo após uma moratória durante o governo do ex-presidente Michel Temer, que proibiu abertura de novas vagas entre 2018 e 2025. A medida teve o efeito inverso, uma vez que diversos grupos educacionais entraram na Justiça e conseguiram liminares para abertura de vagas.
Presidente do CFM, o médico José Hiran Gallo argumenta que o aumento indiscriminado de escolas médicas fragilizou a formação no País, colocando em risco a vida dos pacientes.
“O Direito viveu situação muito semelhante há décadas. A explosão dos cursos jurídicos levou à consolidação do Exame de Ordem da OAB como instrumento de proteção à sociedade. Não se trata de comparar profissões distintas, mas de reconhecer que, quando a formação se deteriora pela falta de critérios, esse tipo de avaliação, conduzida com rigor e transparência, se torna um mecanismo de equilíbrio e segurança”, diz.
Ele defende que o processo seja conduzido pelo CFM e não pelo MEC. O argumento é semelhante ao do relator do tema no Senado. Segundo Gallo, o Profimed não vai avaliar o estudante e sim quem se dispõe a atuar na linha de frente, o que torna o conselho de classe a instância ideal para análise.
“O foco exclusivo do Profimed, diferentemente do Enamed, é assegurar a competência técnica e ética dos profissionais para a prática médica, visando a segurança dos pacientes. Assim, teremos a garantia de que apenas médicos qualificados atendam a população, protegendo pacientes de riscos desnecessários”, defende.
O presidente do CFM afirma que o Enamed tem uma função importante de aferir a qualidade dos cursos de Medicina, mas pondera que “outros exames do mesmo tipo já foram criados e falharam em suas metas”.
“Sua realização é necessária, sobretudo se efetivamente levar a uma mudança no cenário atual, qualificando o preparo dos estudantes para a atuação profissional”, diz.
Uma ou duas provas?
O presidente da Associação Médica Brasileira (AMB), Cesar Fernandes, discorda da manutenção de dois exames diferentes para carreira.
“O MEC e o CFM deveriam se entender para fazer uma única prova. Fazer duas provas é desnecessário, é expor um indivíduo a um estresse muito maior”, diz Fernandes. “Não queremos criar animosidades nem com o CFM e nem com o MEC, mas eu defendo que seja uma única prova, uma prova bem feita, competente, onde possam estar reunidas as entidades que têm condição para opinar criticamente.”
Professor da Faculdade de Medicina da USP e especialista em políticas de saúde e demografia médica, Mário Scheffer critica a possibilidade de que o exame fique concentrado em uma única entidade, com o CFM.
Segundo ele, em outros países que aplicam provas de proficiência, como Estados Unidos, os exames são conduzidos por uma pluralidade de entidades. Ele diz ainda que nesses modelos há conjunção de outras estratégias.
“Em todos os países que têm exame terminal (de proficiência) há duas características: eles são articulados com sistemas de avaliação seriada, externa, regulamentados pelos governos; e têm representatividade de vários setores“, afirma.
Ele diz ainda que concentrar o poder a uma única entidade podem enviesar a prova. “Além de corporativa, por ser representativa dos médicos, o CFM é uma entidade que historicamente, num passado muito recente, tem uma composição bastante ideológica, afastada do compromisso com a ciência”, opina.
Durante a pandemia de Covid-19, o CFM foi alvo de diversas críticas. Um dos casos emblemáticos foi parecer assinado pelo órgão liberando médicos a prescreverem cloroquina, medicamento ineficaz contra a doença.
Mudanças na regulação
Desde o início do governo Lula, o MEC tem fechado o cerco sobre os cursos de Medicina no País. O ministério implementou nos últimos anos uma série de medidas para conter a expansão indiscriminada de vagas na carreira e aumentar a qualidade dos cursos oferecidos.
Neste ano, o Enamed foi aplicado em outubro pela primeira vez para estudantes do 6º ano de Medicina. A partir do ano que vem, a prova também será aplicada para o 4º ano. Os conceitos variam de 1 a 5 por curso. O MEC considera desempenho “abaixo do esperado” as notas 1 e 2. Esses cursos serão submetidos às seguintes sanções:
- Impedimento de ampliação de vagas.
- Suspensão de novos contratos do Fies.
- Suspensão da participação no Prouni.
- Redução de vagas para ingresso (cursos conceito 2).
- Suspensão de vestibular (cursos conceito 1)
Além das provas, a partir do ano que vem, o ministério fará supervisão in loco em todas as universidades de Medicina do País.
“Há um esforço que é comum, independentemente de questões políticas ou partidárias, da preocupação da qualidade da oferta dos cursos na área de saúde no Brasil”, afirma o ministro Camilo Santana.