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‘Quando aluna, eu ouvi: você está com dúvida porque é mulher’, diz nova diretora de Direito da USP

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A paulistana Ana Elisa Liberatore Silva Bechara cresceu dentro das arcadas. Filha de uma ex-aluna da turma de 1966 da Faculdade de Direito da USP — apesar de a mãe não ter seguido a carreira —, ela se encantou desde cedo pelo Largo de São Francisco. “Foi minha grande inspiração. Os amigos dela frequentavam a casa da minha família e contavam as histórias, cantavam as músicas, debatiam sobre justiça. Eu era rodeada por essa cultura e valores franciscanos”, contou em entrevista do Estadão.

Ela entrou no curso em 1994 e, passadas três décadas, assume o comando da “velha e sempre nova Academia”.

“Brinco que entrei com 17 anos e nunca mais consegui sair.” Em quase duzentos anos de existência — a ser completados em 2027 —, só uma outra mulher ocupou a direção: Ivette Senise Ferreira, entre 1998 e 2002.

“É um marco muito importante. Eu vivi a transformação da faculdade. Na época em que eu estudava aqui, na década de 90, o machismo e a invisibilidade feminina eram muito naturalizados.”

Ana Elisa Liberatore Silva Bechara foi eleita nova diretora da Faculdade de Direito da USP.
Ana Elisa Liberatore Silva Bechara foi eleita nova diretora da Faculdade de Direito da USP.

Só 4 dos 40 professores titulares são mulheres

O ambiente docente, diz, era predominantemente masculino. Alunos e alunas dividiam as carteiras em número parecido, mas professoras eram pouquíssimas, segundo ela. “Eu me sentava sempre na frente. E era muito comum a gente levantar a mão para tirar uma dúvida. Eu lembro de um professor que toda vez que eu levantava a mão, ele falava: ‘Você tá com dúvida, né? É normal, você é mulher. Pensa mais um pouquinho’. Ele não falava isso em tom de piada. E a sala tomava isso com muita naturalidade. A gente nem conseguia entender isso como uma violência, algo opressivo.”

Ana Elisa Bechara ao lado de Miguel Reale Júnior, de quem assumiu a cadeira como professora titular de Direito Penal.
Ana Elisa Bechara ao lado de Miguel Reale Júnior, de quem assumiu a cadeira como professora titular de Direito Penal.

Ana Elisa concluiu a graduação em 1998 e já emendou o doutorado. Defendeu a tese em 2004, após engravidar e ter a primeira filha sem nunca pedir licença-maternidade. “Eu tentei esconder a gravidez do meu orientador, porque aquilo era considerado um problema. E, depois que a minha filha nasceu, eu continuei amamentando e pesquisando ao mesmo tempo, e com o prazo curto correndo. Isso é razoável? Não.”

Em 2011, Ana Elisa iniciou como professora na faculdade. Mas chegar à docência não resolveu os problemas. “Eu fui chamada, já como professora, para oferecer café em reunião. Olha, que coisa maluca.”

A mudança, diz ela, começou a partir de 2013, por meio de um movimento que partiu das próprias alunas. As professoras, então, começaram a se unir. Criaram grupos de pesquisas e passaram a discutir o tema e buscar medidas implementadas em outras universidades para tornar o cenário mais igualitário.

Ana Elisa durante conversa com alunos nas arcadas.
Ana Elisa durante conversa com alunos nas arcadas.

Ana Elisa, no entanto, ficará encarregada da diretoria com um cenário adverso. Dos 40 professores titulares da casa, só quatro são mulheres, de acordo com ela. “Em todo corpo docente, só há 17% de mulheres. É mais baixo do que a própria Politécnica [Faculdade de Engenharia da USP]. É muito impressionante.”

Sem ruptura

Ana Elisa irá tomar posse como diretora em fevereiro do próximo ano, e ficará no cargo até 2030. Mas, desde 2022, já exerce o cargo de vice, ao lado de Celso Campilongo, atual diretor do Direito-USP. Ela dará continuidade à gestão e aos projetos que já vêm executando, como a aquisição do Palácio do Comércio, a construção da nova biblioteca e a modernização da infraestrutura das arcadas.

Outro legado que pretende seguir é a luta pela democracia. Ana Elisa participou da organização do ato de 11 de agosto de 2022, que reuniu desde Fiesp e Febraban a órgãos sindicais em torno da leitura da carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito.

Ex-ministro do STF e atual ministro da Justiça de Lula, Ricardo Lewandowski, Ana Elisa Bechara e Celso Campilongo em 11 de agosto de 2023.
Ex-ministro do STF e atual ministro da Justiça de Lula, Ricardo Lewandowski, Ana Elisa Bechara e Celso Campilongo em 11 de agosto de 2023.

“No momento em que nossa democracia está sob ataque, vamos contribuir. Isso faz parte da nossa vocação histórica.” Ela lembra que a Academia de Direito da USP — junto com a de Olinda — deu origem aos cursos jurídicos no Brasil em 1827.

“Era um Brasil recém-independente, que tinha necessidade de formar os seus próprios quadros políticos. Até então, tinha que ir para Portugal se formar. Nascemos com a missão de formar os agentes políticos brasileiros e pensar nos problemas da sociedade brasileira.”

Para ela, o Largo de São Francisco é o lugar de diálogo entre polos opostos em torno de uma preocupação comum, justamente pela credibilidade da instituição. “Não é um discurso militante, partidário. Não é isso que a universidade faz. É um discurso de valores humanistas, dos valores fundamentais da nossa sociedade.”

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